quarta-feira, 20 de novembro de 2013

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domingo, 27 de outubro de 2013

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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

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lavei-me de ti antes da alvorada
e saí no silêncio quebrado apenas
pelo tic-tac de um relógio
que há muito julgava parado.
fingias dormir do mesmo modo
como eu fingira estar nesse
equilíbrio de mentiras entre
dois corpos despidos.

sábado, 14 de setembro de 2013

sei

sei, que qualquer dia a partir de há trinta e oito anos atrás, é tarde. é tarde para partir ou rasgar. ou verter. ou regressar. é tarde. sei, que há na espera a lonjura de todas as ânsias a cavalgar em conjunto, e que o tempo galopa ao nosso prazer e jaz num gozo cruel ante todo o sofrimento que podemos ter. sei que qualquer dia é sempre um dia a mais. qualquer dia é um corpo prometido à decomposição e uma mente já entregue: rendida. que bom fora que um rio me houvesse levado há trinta e oito anos, em sangue e poucas lágrimas. ou que o esperma nem sequer houvera o desplante de fingir-se amor e entrar dentro da casa provisória que acolhe toda a vida em potência. uma casa ocupada. assaltada como em dias de revolução ao contrário. sabemos como ninguém que amor é aquilo que chamamos às coisas podres. é aquilo que fazemos quando a verdade nos falha. quando já não podemos conter o riso histérico por nada. uma falha sísmica entre a ordem e o caos. é tarde para que nos digam "o que andas a fazer" e nós "nada". se o sentido é não o haver. como a natureza a bolsar imperfeições e a crescer de qualidades cantadas. a natureza. é tarde. é um engano, somente. um engano.

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sei, que o que sei me foi trazido nas asas de um pássaro morto ao colo de um caçador de gente. vestido de preto. sei que estava vestido de preto na noite e como a noite. sei que cintilavam nos seus olhos pirilampos de angústias. um só tiro. apenas um retiro. apenas uma forma bélica, uma bala trespassada e a respiração interrompida. um zunido mecânico e pontiagudo. um vértice sobre as nuvens a pairar sobre a linha do horizonte. o pássaro morto. negro e rubro. asas e sangue de carne, seco. seco, o sangue. frias as carnes. e a bala na mão. os olhos no chão. todo o conhecimento. tudo o que sei. erguer-se-á um qualquer túmulo ou far-se-ão cinzas dos restos. quando os restos são o caçador e não a caça. quando os restos estão para lá da mão que agarra e dos olhos que parecem esconder todas as noites. a cabeça de um homem é uma síntese de todas as noites do mundo. e chove. está um verão a chegar ao fim e relampeja por cima de nós. a luz intermitente que incendeia a bala de quando em quando e assusta as anciãs que desconhecem as letras. sei, que as velhas foram caça. um dia foram caça. não caíram como pássaros moles abocanhados por perdigueiros obedientes. as velhas, foram elas mesmas, perdigueiros obedientes, e em simultâneo a caçada. sei que foram tempos. outras caças, tantos tiros. tantas quedas abruptas no chão seco ou molhado, tanto fazia se havia se havia chão onde cair. talvez o pássaro de sangue encrostado fosse ontem a morrer sobre hoje. talvez o caçador um bigode desfeito em gravata. talvez um orador em palestra infindável sobre o estado das armas de caça. talvez somente um gatilho.

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sei. um jogo de labirintos impenetráveis. a urgência na forma de um sopro sobre um corpo esquálido. a fortuna e a miséria a conviver no mesmo lado. a servidão das horas em redemoinhos. sem solução à vista. um ser só e sem membros. sei que os seres sós são desprovidos de bem mais do que membros. são desprovidos dos próprios seres sós. clamam por desafios. fazem de toda a insensatez um novelo de desafios. conceitos vagos que não amortecem nenhuma queda.

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a solidão é o circuito da mente. o estado natural das coisas quando crescemos, naturalmente dotados de um formato do eu que não suporta senão o seu estado de constante exaltação. fazem-nos exaltação através da usurpação de tudo quanto temos em nós que nos faça "plural". e por isso a queda. todo o ser singular, no desespero inconcebível e imperceptível do seu abismo, é um ser em queda. por isso, uma razão entorpecida em químicos de fórmulas complexas faz do sono a cama de espinhos que se nos aparenta seda. por isso, nos encantamos com todas as coisas que anulam em nós a capacidade de encantamento com todas as pessoas. por isso, nos encantamos com as pessoas que fazem do nosso caminho um funesto desfilar de sorrisos doentios. incontroláveis. furiosos. sendo a capa de todas as mutilações, colorida e vibrante. caleidoscópica. no interior, apenas esta densidade negra de nós mesmos, crescendo para a solidão com ou sem a consciência de que toda a exaltação sendo vã, é caminho de sentido único. aos poucos somos as peças electrónicas obsoletas das quais nos desfazemos. sei. ou cuido saber.

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sei. que um acordar diferente pode ser ao mesmo tempo um adormecer de tanta gente, como que um universo de clorofórmio aspergido sobre as cabeças que se vêem como formigas tontas e sem destino, desgarradas dos seus pares e do seu propósito. a sobrevivência veste-se nesta manhã, de mentira como palavras estruturadas em relatórios infindáveis. uma contagem de mortes. um desprezo de vidas. uma estória para contar a todos os dias que se seguem depois do dia em que se temia não haver mais dias para contar. cada um morre primeiro dentro de si mesmo. depois então, num fósforo de tempo ou em passada lenta, dissolve-se na evidencia de que o fumo jamais teve um fogo ateado. os contadores de estórias escrevem-nas, polidas e escorreitas na história das coisas e ficam lá, quase que para sempre, pois o sempre é a parcela que apenas temos em nós como tumor do nosso pensamento, ou pior, do nosso desejo. ficam lá até a lógica dessas coisas ser maior que a sua medida nos relatórios, mas sempre menor que a dimensão do comportamento mesmerizado dos corpos. hoje é dia de comprar qualquer coisa novo. hoje é, afinal, o dia da obsolescência das ideias. o dia em que a morte se torna tão banal que a contagem dos corpos nos faz esquecer que nas escolhas, tantas vezes, povos inteiros se suicidam e incendeiam os irmãos. espetam-lhes as estacas. fundem-nos com a sua dimensão menor de leitores de relatórios. de eleitores do segredo que nunca os consumirá. será branco, como o nevoeiro cerrado sobre o rio das trevas. será essa passada a compasso, como marcha militar onde a vida se resguarda, sobrevivente, em todos os critérios da sua extinção.

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sei cantar amanhãs quando os dias não medram porque plantaram pedras em cima da semente dos dias. e pouco mais sobra que linhas escritas sobre a espuma regurgitada pelos aviões que acasalam com os pássaros. amanhã nem sequer é um dia a sério. amanhã é uma ideia vestida de tantas coisas como a crença que se veste de seres luminosos e milagres. olhar o amanhã no respirar ansioso por mudanças, por que tudo seja a diferença de nós somados a todas as circunstâncias, diminuídos de todas as limitações. uma luz que nos trespassa quando apontamos de forma acusadora o dedo aos astros, os interlocutores que conhecemos do nosso pretexto para irmos ficando. ficando a apodrecer num tempo esgotado desde que se anunciou a fatalidade. é uma criança. não, é um cadáver por vir. é a flor de todas as intempéries.

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sei. potenciais cadáveres a cada instante. os que empurram o mundo com a barriga, e sorriem com cara de vómito ressequido. como se o mundo fosse um misto de quintal e de palco. vaidades tais que, sei, serão do mesmo fim. um dia, perdendo a compostura que aprendemos nas mais diversas morais, faremos dessa barriga um jogo de tripas sem recomposição possível. no fundo, tornaremos as tripas mais parecidas com a mente retorcida dos fanfarrões, e brincaremos com elas à justiça feita sobre os que nunca puderam sequer espreitar o conceito.

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não me escondo da sombra do que sobra do mistério. como a vida a escoar em ralo lasso por entre as intempéries da ideia. talvez o mistério seja apenas um resíduo inerte e inócuo da minha passagem, diáfana, sem um propósito mas com um caminho sulcado sobre pedras de toque dos sonhos. ora construídos, ora dilacerados. nunca cheguei ou chegarei a ser aquele que se destaca no silêncio dos dias, e no quase infinito ruído de todas as outras sombras. as outras sombras que, disfarçadas de luz, me tentam anular.

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não é possível anular o que não é.
não sei.

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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

dormir no bico de um pássaro morto

fetiche. quero e desespero. acendo cigarro.
não fumo. desisto de procurar no fundo do poço,
a virtude. o entrelaçar de dedos. paciência.
os passos são dados sobre os taipais das obras
em torno das quais chovem pássaros de todas as cores
e cantam uma melodia disparatada.

a tarde cai sem pressas e não abona
em favor da imagem projectada
nos espelhos que são janelas de edifícios altos.
como os saltos. como as pernas. como a voz que
do outro lado do mundo adivinha o passo.
não é culpa. a culpa é um dos pássaros cantantes
morto depois de rodopiar e embater contra o seu
próprio reflexo. o pássaro está morto. finalmente solto.

as obras foram esquecidas. cheiram ao esquecimento.
a todos os tipos de esquecimento. como se esquecem
corpos velhos enrugados em torno dos quais
nem os abutres soltam gritos de matar fomes.
os pássaros como que ensaiam uma melodia funesta
e disparam sortes que trazem nos bicos.
os saltos altos e o cigarro apagado. não fumo.
desço ao fundo do espaço e sou vestido de lábios
antes de pensar porque terão interrompidos as obras
porque cantarão ainda os pássaros e consigo ouvir
daqui. como crianças que choram. não gosto de crianças.
as crianças choram, não cantam nem sequer
as marchas fúnebres dos corvos desafinados.

[a noite que nos inundava, e os berros lancinantes
um queixume de constâncias e a fome.
os seios de outra boca. e o silêncio que não há.
quero ler. quero ler em silêncio. quero o regresso
do tempo em que o corpo era o meu único altar.
a multiplicação de lágrimas indecifráveis.
maléficas. um redemoinho de cinismo
de pernas e braços tão pequenos. um choro constante.

a fuga. o único altar que se desfaz
quero e não posso comer. comer-te
no silêncio da noite. no teu próprio grito.
quero ler e reler as formas de todas as frases
de todos os livros que me enganaram de forma vil.
o choro é uma merda. quero comer. quero dormir.
como dormir se há meses o sono é sonho acordado.
como dormir se não me lembro de estar dentro de ti.
quero foder-te como se o mundo fosse despido de
crianças. como se fossem todos nados mortos
e o meu mundo feito de saltos altos
dentro de ti em todas as manhãs]

num esgar habitual, trejeito genético
expulso os pássaros num gemido só, bem alto
da cave húmida, dentro de outra cave húmida.
não sei porque terão abandonado as obras.
tal como eu, cheiram a esquecimento
e pagam pela liberdade num canto oculto qualquer.
fetiche. as escadas subidas devolvem-me a luz
aos olhos cansados. será desta que irei dormir
ainda que no bico de um pássaro morto.

camilo: um homem livre

o homem livre chora porque quer ser ainda mais livre. viver naquela liberdade funda, bem funda no conceito que lhe rasga a garganta a cada palavra de ordem gritada bem alto. bem alto para que se projecte a voz nos edifícios antigos da cidade. mas o choro é grito aflito de ódio disfarçado de moral. um ódio que engasga a cada passo. e de quando em quando um gole de cerveja que escorrega como uma revolução no estômago. uma síntese entre o pensamento e a necessidade da alavancagem química da ideia. e que bela ideia essa utopia que entope as artérias de raiva. o homem livre que quer ser mais livre, sabe bem que nunca foi livre. sabe mais do que isso. nunca foi homem. sabe para lá de tudo. nunca lhe foi permitido pensar para além da liberdade. e que mais querer que ser livre numa terra de gente livre. o que querer mais que uma vida recheada de vozearia e braço no ar em busca de algo que deveria ser o acrescento de liberdade à liberdade que está projectada como antítese da possibilidade na sua vida. a palavra de ordem ecoa nos velhos edifícios à mesma velocidade da construção do mundo. e, no entanto, ele destrói-se.

ao descer a avenida, camilo tropeça nas suas próprias ideias a borbulhar,

talvez um dia esta merda ande. mas reunimos ontem. reunimos hoje. amanhã. os dias que forem necessários. o mundo acordará de um pesadelo... ninguém trouxe o feijão, foda-se. nada se consegue organizar sem organização, entendem?

mas não seria suposto não termos qualquer organização. não tens feijões come lixo. não tens lixo... a sociedade recolhe até os seus restos. por vergonha. é uma sociedade com vergonha até dos seus próprios restos. cada um que faça o que entender. não somos livres e tu sabes disso. e de tanto saber queres organizar outra forma de prisão?

camilo regressa à palavra de ordem. a palavra contra o sistema. e o sistema, seja lá o que isso for, pariu camilo naquela mesma rua há vinte cinco anos atrás quando a sua mãe, sem dores nem sinal, lhe deu ganas de fugir do mundo. mas o que tinha era um pequeno mundo a querer escapar ao seu universo húmido por entre as pernas. camilo nasceu a berrar palavras de ordem no meio da rua com a assistência da senhora que passava e que tinha na vida o ofício clandestino de cortar as vidas, ou os males das vidas, pela raiz da existência.

já está cá fora. nunca se viu tamanha vontade de sair ao mundo. e como berra. será livre. tão livre como todos os de caxias ainda há pouco no tempo. o sangue lambe a pedra da calçada. maria pegou no nascituro camilo pelas pernas e deixou-lhe vermelhas as nádegas. já havia chorado, mas aquela, disse a senhora, era por tudo quanto havia de vir.

ninguém trouxe feijão. eu disse: feijão. parece que querem mudar o mundo sem feijão. sem voz. sem palavra de ordem. não queremos quem nos comande. queremos quem nos dê feijão em troco de uma moral. percebes, foda-se?

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

retrato de uma sombra

sou de um tempo sem momentos.
um tempo sem momentos em que
do escuro se soltam gritos
debaixo das pontes. e as pontes
forram homens que se fizeram grandes
e quiseram unir margens de si mesmos
tornando-se rios. um tempo com rios.

pensavas de mim que eu era
tudo o que parecia ser quando escrevia
que os sonhos realizados em estanho
se fundiam nos murmúrios de água doce.
e apenas os odores de esgotos.
apenas os colossos.
uns abandonados em escombros,
outros engalanados de futuros
como que premiados pela cabeça baixa
em assentimento aos anos que pesam sobre a pedra.
pensavas em mim de sangue quente.
e eu frio como a noite dos dias
na sibéria. eu como uma liberdade escondida
em vergonhas. quem me dera
ser livre e poder dar-te um pouco
dessa fragrância. mas eu preso
na pior de todas as prisões
a de ser infinitamente imune a todas
a todas as prisões, sendo ao mesmo tempo
infinitamente preso a todas as liberdades.

de mim nem a verdade nem a mentira.
apenas eu, nesta obscuridade.
a gargalhada histérica e o choro depressivo
de um ser que nada mais conhece
que as sombras e a matéria.
as sombras que derivam da matéria.
e que vive livre e preso nas duas
como um animal moribundo
na consciência plena do seu estado.

queria que entendesses que em mim
não repousa a crueldade do mundo.
apenas a minha própria que deriva dessa outra.
de nada servem as coisas belas
se não temos como envolvê-las
da realidade acima de todas as realidades.
só vemos o que está para além
se conseguirmos penetrar bem fundo
no mais fundo de nós,
e lá ficarmos pelo tempo suficiente
para sabermos da real matéria
que nos compõe.

nunca poderemos ser sequer
uma ínfima parte da grandeza
da obras materiais, dos colossos
que construímos, com o único propósito
das vaidades: de haver construído
e de poder demolir todas as construções
como a mesma força.

eu sou a fraqueza de todas as forças.
entende-me assim e ter-me-ás
traçado o esboço do eu que está
além do que escrevo. terás penetrado
tu mesma, no mais fundo de mim,
não encontrando senão a minha sombra.
a única coisa que tenho e sou:
a sombra de uma sobra de matéria.


pintura: Giorgio De Chirico - "O arqueólogo"


terça-feira, 6 de agosto de 2013

contar os dias

um gesto subtil afasta um adorno
e despes-te sem volta num tempo.
tal o ninho de agosto em hexágonos
na matemática do gosto. a fronteira
de ter-te em inspirações breves
e fazer de ti a minha cúmplice
das madrugadas. o astro que brilha
ao cimo das vestes, entre o espasmo
e a romaria ao corpo que resta.
talvez se contem os dedos pelos dias
e se instale aqui a fórmula matemática
da soma que divide em quimeras.
talvez a roda dentada de uma carne
em consumição lenta, que se entrega
à desistência na exacta medida em que
apenas esta se coaduna com a decadência
mecânica do suporte de identidade.
na realidade é o corpo o próprio adorno,
quantas vezes intempestivo até sucumbir
à evidência. a evidência da lentidão
do reflexo no relampejar cruel
da degradação. está escuro, e nós aqui,
nunca esquecidos,mas sempre abandonados.
brinquedos de uma força grande
na qual acreditaste um dia.
o outro adorno. o adorno da mente.
o adorno que te desmente que um dia,
num lado de lá, a máquina será reposta.
mas nós aqui, nunca esquecidos,
sem máquina. sem mãos entregues
nas outras mãos. sem mais dias para contar.
sem saber sequer mais contar os dias.